Pratos
Essa noite, eu fiz o quebra cabeças dos pratos sujos.
Havia uma taça de vinho. Fina, de cristal. Custou mais que os brincos que você me deu de Natal. Havia o bowl, cumbuca, pote, como chama?, da cachorra. Havia dois pratos brancos, com manchas amarelas, uma mancha marrom, uma mancha verde, um fio de sangue seco. Havia um copo, de água, que por mim nem lavaria. Havia colheres, lambidas. Havia um pote de iogurte que eu joguei no lixo. Havia uma panela que precisou ficar de molho. Havia uma faca japonesa, que cortou ao meio mais uma esponja.
Nossa pia é grande, e você pagou, há meses atrás, logo depois da reforma, por um triturador de lixo. Nós decidimos não ter uma lava louças porque você prometeu que não era um problema limpar minha sujeira.
A nossa casa tem pelos de cachorro e planos de futuro que jamais serão cumpridos, mas estamos felizes. Eu escrevo este texto na cozinha, na bancada de mármore que você escolheu, e escuto seu ronco suave vindo do quarto. Estou bêbada, na minha frente há frutas secas, castanhas, creatina, banana, café, arroz, feijão, farinha que minha vó mandou, farinha de amêndoas, pimenta que você secou, azeite que trouxemos juntos da Itália, mas que só eu acho que tem gosto de mar.
São duas e dezesseis da manhã, o relógio do computador me diz, mas você e a cachorra dormem. Ela fez festa quando cheguei, mas voltou para você, e eu me senti extra nessa casa, cuja arquitetura é sua, cujos hábitos são seus, que não tem guarda-roupa para vestidos, que não tem jane anti-ruído, e cuja temperatura é sua, apesar de eu insistir todos os dias por um aquecedor. Gás, não elétrico. O elétrico ressaca o ar.
Nossa casa não tem tapetes, porque a cachorra ia fazer xixi, e porque são caros, e porque você queria de fibra e eu queria de algodão, e porque você queria bege e eu branco, ou você queria cinza e eu azul, ou porque você não queria, e eu queria, e você não quis. Agora, o chão é frio, e maio chegou em São Paulo. Eu te encontrei no chão, e te dei a mão e ficamos ali, pensando,
Se eu te levantava, ou você me puxava, ou se te soltava, ou se a gente virava briga, gritos, surto, choro.
Eu consigo escutar o barulho da rua no silêncio que é viver aqui. Preciso que você fale mais alto, tem um ônibus passando, quê?, não consigo escutar. Escuto tambores. Uma mulher grita. Latidos. Nosso vizinho canta. Preciso que você fale mais alto, a coifa está ligada. Ivans Lins está no rádio. Um louco berra na rua, xinga a ex-mulher. Aquela vadia. Aquela vilã. Aquela cachorra, que late no prédio do lado. O caminhão de lixo apita, e o motor da adega resolveu funcionar. Preciso que você fale mais alto, porque não consigo te escutar quando estou gritando. Preciso que você fale mais alto.
A lua estava bonita hoje, mas o som do bar ao lado não me deixou perceber.
Quando eu lavei um tigela e uma taça e um prato amarelo de ovo, pensei que te amava. Rita Lee morreu esta semana. Brindei a ela, cortei o dedo na faca japonesa, escrevi este texto e pensei no que você fez, antes de eu chegar, não lavar os pratos, como você prometeu que faria.
Preciso que você fale mais alto, meu amor, daqui eu não consigo escutar. Você dorme, mas eu só escuto silêncio.