Rebentação
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[Em edição — escrevo aberto, e depois edito]
No primeiro dia em que chegou à beira do mar, o encontrou liso, sem nenhuma ponta branca das marolas ou do reflexo do sol. Não sentiu nem o cheiro forte comum das algas verdes e marrons que muitas vezes enchiam as ondas, nem o som errático que sempre a colocara para dormir e que nunca encontrou em nenhum som de ar condicionado por onde foi.
Ficou alguns bons minutos encarando aquele horizonte reto, tão reto — e naquele dia, reto demais — antes de ter coragem de tocar a água. Via ali ritual e reencontro, por isso sempre ia cedo, demorava alguns minutos sentindo apenas as ondas incertas nos pés e os pés afundando na areia, antes de dar um mergulho, um único mergulho, e seguir com seu dia.
Mas naquele dia, o primeiro dia, teve que dar muitos passos em direção à rebentação, porque o mar fúnebre não ia ao seu encontro, nem se afastava, e nem ia de novo, morto como estava. Andou e andou até estar em uma parte que, em qualquer outro dia, já seria funda, pela sujeira da areia e pelas pedras expostas, até que, sem aviso, arrebentou-se.
Havia sol, e não havia vento, mas houve naquela onda uma tempestade.
Por pouco não caiu. Ficou exausta e com as pernas fracas de lutar para permanecer de pé antes de desistir e voltar para a areia seca. Fez força para sair. Olhou para o mar e encontrou ali chumbo e cinza.
Todos os dias, por uma semana, tentou novamente. Foi enxotada e passou pela humilhação, no sexto dia, já cansada, de cair no chão, o biquini torto, um seio de fora, a cara afogada, quando as primeiras pessoas chegavam à praia. Foi vomitada daquela água. Parasita. Perfume barato.
Por alguns dias, orgulhosa, nem se aproximou e nem pensou no mar. Mas as casas e prédios e pastilhas e rejuntes viviam ali, lembrando a ela que ele existia. Talvez fossem brancos se ele não existisse. Agora eram beges e verdes, e muito brancos, como se recém feitos. Brancos demais, como se os homens tentassem segurar o tempo. Da janela do seu quarto de infância, viu também uma quadra de esportes: dela, não se via nenhuma cor verde, amarela, azul ou vermelha, apenas concreto desgastado e entulho — as crianças tinham crescido e envelhecido, e talvez os netos não passassem mais que algumas tardes na monotonia dos apartamentos de eletrodomésticos cobertos de plástico e maresia.
Não sabia dizer quanto tempo tinha passado, ou se tinha sido o salitre desse mar vingativo que tinha corroído os anos. Imaginou-o destruindo pouco a pouco tudo o que se lembrava. Tirava dela o mergulho, e também as vigas e telhas, calçadas e postes, portões, rejuntes e pinturas.
Mergulhou novamente por orgulho, porque se sentia íntima e, por isso, dona. Não procurou ali calma, silêncio, ou o estalar da pele salgada. Queria mesmo quebrar um prato na parede azul clara do fundo, e sentir os cacos respingando no seu corpo. Caiu e levantou-se tantas vezes, e enfiou a cabeça como quem não deve, sentiu culpa, medo, e por fim raiva, e o nó de algas marinhas, areia e conchas nos cabelos que desfez tarde a dentro no banho.
Por dias, saiu dele com rasgos de sangue na perna, ou arranhões de areia nas costas. Um dia, conseguiu passar por três ondas de espuma até ser subjugada ao fundo por uma tonelada de água. Em outro, passou tanto tempo embolando-se nas ondas que não sabia onde estava o chão ou o céu e perdeu o ar até parar com pernas e braços trocados de cara na areia seca. Mais alguns, percebeu que remendavam mais um pedaço de rejunte, no que parecia serem exatas dezessete pastilhas. Um único homem numa corda cinza que balançava com o vento.
Já nem era mais verão. Acordou atrasada com um estrondo tão forte que ela jura que respingou em sua janela no décimo terceiro andar. Não foi ao mar e o ouviu gritar e gritar todo o dia, cantando, batendo, chamando, galopando, golpeando, que não, que não, que não. O céu estava azul, a praia estava vazia. Caminhou até ele e molhou os dedos dos pés.
Dias calmos, em que ela boiava, se sucediam a dias tão tempestivos de ela terminar quase nua, com areia nos olhos e ouvidos e vagina, buscando um ar que não vinha. Mais pastilhas tinham caído. Um dia, passou horas torrando de sol e salitre, a pele curtida que se desmanchou por dias. Outro, foi até as pedras, de pé na ponta, bamba num precipício, para saber se ele atrevia a derrubá-la dali.
Foram anos, até um dia, de chuva fina, em que chegou na areia e sentiu-o realmente manso, sem testá-la, ondulando-a, abrindo espaço, sussurrando que venha, e seja minha, e me beba, e me goze, e me dome, e me aceite, e me engula, e se vá, e volte, e se vá, e volte, mas não se vá. Comprou tintas verdes e azuis e o ouviu pela última vez ao virar a esquina, sabendo que, de novo, não poderia voltar.